Gostava tanto de te poder escrever. Escrever-te como quem
conta um conto, lê uma paisagem no peito, reza uma ladainha na mente.
Sim, é isso mesmo! Quero escrever como quem reza uma ladaínha
daquelas que ambos ajudámos a fazer, eu
com os passos pequeninos, como se eu fosse o
reboque dos mais velhos, eles com a roda do alcance da perna grande, eu a dar o
triplo das passadas pelo curto alcance da minha perna.
Lembro-me especialmente
duma, quando as searas eram para o lado
de Fonte Nova, em direção a Genísio. Como eu poderia esquecer essa ladainha de
rezas, como rosário de penitências?! O padre à frente ia mandando a reza, o povo
respondia rezando; o padre parava à frente das searas e, metendo o espargidor
da água benta no balde de prata escurecida, fazia o gesto de a lançar aos campos para que
a seara não fosse atacada de ferrugem, a folhagem crescesse para que não
tombassem as canas umas sobre as outras e o grão não apodrecesse antes que fossem
cumpridas as semanas de gestação até estar loiro, de maduro, ou não viesse uma
trovoada e lhes esmagasse o grão antes de ser feita a ceifa.
O povo parava e
olhava a trigueira, rezando ainda com mais devoção quando virado para uma que
lhe tivesse nascido do seu suor. Eu corria o tempo todo, com os passos
curtíssimos e só descansava quando se ouvia o espalhador contra as paredes da
pia da água benta e o pessoal parava. Era tempo de merugens, daquelas mesmo verdes
antes do cuco chegar. E eu que tanto gostava de merugens! ( nem sei o
verdadeiro nome em português). Houve um chamamento mais forte que a reza do
padre. De uma trigueira, da parte de cima do caminho saía um rego de água
límpida, atravessava o caminho e, ia espalhar-se na berma baixa, formando no
chão um manto verde claro, de plantinhas tenras, umas bem encostadas às outras,
veludo de seda tecido em tear, aos meus olhos uma tentação da gula. Parei
especada. Quando me dei conta, a cantilena ia já mais adiante, a minha mãe foi
ficando e, quando viu que já não importunava a reza, gritou: Á garota!, que estarás
tu a fazer?
Dei um pulo sobre mim mesma com o susto. Uma perna cruzou-se
com a outra perna e caí estatelada no meio do charco de merugens. Encharcada, segui
a reza, com um safanão em cima do lombo que era para não ser distraída, a
tremer de frio, com o vento a bater-me no corpo, o vento frio a anunciar a
Semana Santa sobre a água das minhas vestes a repassar até à pele.
A reza contornou
outro caminho para mais searas benzer e, eu rezava, não pelas searas, não pelo
vestido que ficou manchado com os depósitos acastanhados próprios das águas paradas, mais quentes,
porque só as águas mais quentes criam aquele verde de salada; rezava e
tiritava, com receio de ficar com febre, da gorja inchada e assim não poder ir
ao bailarico do dia de Páscoa, onde toda a gente dançaria, incluída eu, dois
palmos e meio de altura, agarrada a outras tais.
Era assim que eu gostava de te escrever, nessa cadência de
palavras como que a rezar, rezas que fariam medrar o sustento de quem não tinha
outro sustento. Escrever-te sem tempo para olhar as mãos, os dedos deformados
pelo frio das artroses, sem sentir as dores das tendinites causadas pela
escrita fria num quadro de ardósia cinzenta e pela caneta Bic, a vincar com
toda a força a matriz que serviria para duplicar os pontos, para que ficassem
legíveis.
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