Acerca de mim

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Sintra/Miranda do Douro, Portugal
Gosto de pintar,de escrever e de fazer trabalhos manuais.Sou simples e verdadeira. Tenho que pôr paixão naquilo que faço, caso contrário fico com tédio. Ensinar, foi para mim uma paixão; escrever e pintar, continua a sê-lo. Sou sensível e sofro com as injustiças do Mundo. A minha primeira língua foi o Mirandês. Escrevo nessa língua no blog da minha aldeia Especiosa em, http://especiosameuamor.blogspot.com em Cachoneira de Letras de la Speciosa e no Froles mirandesas.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Escrever como quem reza


Gostava tanto de te poder escrever. Escrever-te como quem conta um conto, lê uma paisagem no peito, reza uma ladainha na mente.

Sim, é isso mesmo! Quero escrever como quem reza uma ladaínha daquelas que ambos ajudámos  a fazer, eu com os passos pequeninos, como se eu fosse o reboque dos mais velhos, eles com a roda do alcance da perna grande, eu a dar o triplo das passadas pelo curto alcance da minha perna.

 Lembro-me especialmente duma, quando as  searas eram para o lado de Fonte Nova, em direção a Genísio. Como eu poderia esquecer essa ladainha de rezas, como rosário de penitências?! O padre à frente ia mandando a reza, o povo respondia rezando; o padre parava à frente das searas e, metendo o espargidor da água benta no balde de prata escurecida,  fazia o gesto de a lançar aos campos para que a seara não fosse atacada de ferrugem, a folhagem crescesse para que não tombassem as canas umas sobre as outras e o grão não apodrecesse antes que fossem cumpridas as semanas de gestação até estar loiro, de maduro, ou não viesse uma trovoada e lhes esmagasse o grão antes de ser feita a ceifa.

 O povo parava e olhava a trigueira, rezando ainda com mais devoção quando virado para uma que lhe tivesse nascido do seu suor. Eu corria o tempo todo, com os passos curtíssimos e só descansava quando se ouvia o espalhador contra as paredes da pia da água benta e o pessoal parava.  Era tempo de merugens, daquelas mesmo verdes antes do cuco chegar. E eu que tanto gostava de merugens! ( nem sei o verdadeiro nome em português). Houve um chamamento mais forte que a reza do padre. De uma trigueira, da parte de cima do caminho saía um rego de água límpida, atravessava o caminho e, ia espalhar-se na berma baixa, formando no chão um manto verde claro, de plantinhas tenras, umas bem encostadas às outras, veludo de seda tecido em tear, aos meus olhos uma tentação da gula. Parei especada. Quando me dei conta, a cantilena ia já mais adiante, a minha mãe foi ficando e, quando viu que já não importunava a reza, gritou: Á garota!, que estarás tu a fazer?

Dei um pulo sobre mim mesma com o susto. Uma perna cruzou-se com a outra perna e caí estatelada no meio do charco de merugens. Encharcada, segui a reza, com um safanão em cima do lombo que era para não ser distraída, a tremer de frio, com o vento a bater-me no corpo, o vento frio a anunciar a Semana Santa sobre a água das minhas vestes a repassar até à pele.

 A reza contornou outro caminho para mais searas benzer e, eu rezava, não pelas searas, não pelo vestido que ficou manchado com os depósitos acastanhados  próprios das águas paradas, mais quentes, porque só as águas mais quentes criam aquele verde de salada; rezava e tiritava, com receio de ficar com febre, da gorja inchada e assim não poder ir ao bailarico do dia de Páscoa, onde toda a gente dançaria, incluída eu, dois palmos e meio de altura, agarrada a outras tais.

Era assim que eu gostava de te escrever, nessa cadência de palavras como que a rezar, rezas que fariam medrar o sustento de quem não tinha outro sustento. Escrever-te sem tempo para olhar as mãos, os dedos deformados pelo frio das artroses, sem sentir as dores das tendinites causadas pela escrita fria num quadro de ardósia cinzenta e pela caneta Bic, a vincar com toda a força a matriz que serviria para duplicar os pontos, para que ficassem legíveis.

domingo, 16 de setembro de 2012

Só mesmo o vento


Só mesmo o vento me trará o que a memória teima em me apagar.

Talvez o chiar dos pássaros aqui em cima nas árvores, o rugido dos leões ao longe, o esmagar de folhas secas pelos pisar  cauteloso dos leopardos, ou, quem sabe a hiena que, movida pelo instinto de encontrar cadáveres, me segue, por me julgar cansada e na esperança que eu caia, para de mim fazer o seu  deleite; talvez eles todos me devolvam muitas das memórias.

 Quem sabe bastássem as hienas, sim as hienas, asquerosas, traiçoeiras!, com os seus dentes fortes e mandíbulas mais potentes que as do leão bastássem para rasgar a carapaça que cobriu o meu cérebro, cravadas bem naquele ponto que corresponde à memória, e, me farão acordar do torpor que tudo me apaga na mente: O  que me contaste, o que tinha  o dever de ter escrito e não escrevi, tudo o  que eu tinha o dever  de ter vivido e não vivi.

Levem-me lá deuses da floresta, levem-me lá,  para ver se no local, a memória se me aviva!
Os deuses!...

Talvez só o vento! O vento que percorre todas as veredas, florestas, cidades e estepes, savanas ou mesmo pântanos, talvez ele me traga tudo, ou antes ,me leve até lá.

Prefiro que me leve. Quero prender-me aos cabelos do vento e, bem rente às nuvens, voarei.
Prometo lá pintar uma tela onde ficarão escritas as histórias de manadas de luzes dos olhos das manadas de búfalos na noite, dos solavancos do  jeep a atravessar as savanas, do barco a navegar o Púnguè  ou a virar-se nos pântanos povoados de crocodilos, dos leopardos a comer o isco mesmo ao lado da tua choupana feita de ramos verdes, parecida à camisa de camuflado que vestias; para que não desse com a tua presença, do crocodilo que te mordeu e a ferida que fez gangrena, do braço que ía sendo amputado, das centenas de quilómetros por picadas com uma mão só a guiar o jeep e estrada de terra batida sem fim, numa viagem a parecer a última. Tu sempre a resistir, a resistir, sempre a resistir até ao dia em que não deixaram que resistisses…

É tão difícil escrever! Sim, prefiro pintar que escrever. Não há caneta ou teclado que seja capaz de por a cor que vejo, o cheiro que sinto da terra molhada e dos raios a incendiar as árvores, a leveza e frescura do amanhecer, o calor abafado do ocaso, a força da lua alaranjada a nascer e que depois se vai fazendo puramente prateada, beijando o lago onde vaidosamente  penteia os cabelos grisalhos.

Quero na capulana escrever-te, sim!, na capulana pintada de todas as cores que em ti sinto e para que um dia a já fraca memória não me atraiçoe e  negue, que me apaixonei por tudo quanto és e me mostraste.
 

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