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Sintra/Miranda do Douro, Portugal
Gosto de pintar,de escrever e de fazer trabalhos manuais.Sou simples e verdadeira. Tenho que pôr paixão naquilo que faço, caso contrário fico com tédio. Ensinar, foi para mim uma paixão; escrever e pintar, continua a sê-lo. Sou sensível e sofro com as injustiças do Mundo. A minha primeira língua foi o Mirandês. Escrevo nessa língua no blog da minha aldeia Especiosa em, http://especiosameuamor.blogspot.com em Cachoneira de Letras de la Speciosa e no Froles mirandesas.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Depois do pequeno almoço

Inês é uma mulher como tantas outras da sua geração: Livre, espírito irreverente, pés bem assentos no chão. Ás vezes não pareçe, dado o seu ar sonhador e ausente, mas tem. Os pés tão assentes no chão tanto quanto o espírito, num misto de sonho e racionalidade.
Caminhava na Avenida 5 de Outubro em Lisboa, numa manhã outonal de meados de Novembro. Vestia uma capa para se protejer da chuva que ameaçava cair, cinzento prateado, de modelo moderno que caía em ligeiro godés sobre calças pretas e a túnica de seda com motivos pretos, bejes, castanhos e roxos. À volta do pescoço, um cachecol de algodão do mesmo tom de roxo. Nos pés, meias arrendadas do mesmo tom do cachecol que os sapatos pretos decotados, de salto alto, deixavam ver. Vestida com chitas ou cetins, para ela, o sentido de estética na combinação das cores, prevalece em relação à qualidade dos materiais e dos preços.
Caminhava com um livro volumoso que aproveita para ler em todos os minutos livres, um romance com seiscentas e onze páginas, escrito por José Rodrigues dos Santos, de leitura fácil. Lê-se duma assentada, diz. Tinha lido outros em que muitas vezes tinha que voltar atrás para melhor entender a linguagem do autor e agora apeteceu-lhe ler algo mais leve e óbvio.
Caminhava com ele na mão esquerda, encostado ao peito; na mão direita, uma carteira pequena, tipo pochete. O som do pisar firme no passo apressado ouvia-se nitidamente, o que é uma característica sua e que denota o seu temperamento firme e seguro, tanto como as rochas que a viram nascer.
Sentiu-se observada.
Um homem com sentido de estética repara para a combinação das cores que uso, pensou.
Constatou que o motivo não era esse, quando ouviu um “desculpe”. Olhou para ele intrigada e parou na continuação da mesa da esplanada que ocupa parte da largura do passeio da avenida.
Teria mais ou menos a mesma idade que ela, sessenta e alguns anos, alto, bem apessoado, com uns olhos transparentes verde esmeralda, do mesmo tom da camisa que usava, impecavelmente engomada. Os olhos, um perfeito mar sereno envolto em pálpebras.
Gosta de ler, perguntou.
Sim, a avaliar pelo volume do livro que estou a ler, claro que sim, respondeu Inês. É que sabe, aconselharam-me este livro, um amigo, um amigo intelectual aconselhou-mo mas acho-o demasiado maçudo, muitos pormenores que quanto a mim não ajudam em nada à história que conta; está a faltar-me paciência.
Inês olhou para o livro que estava em cima da mesa e de relance pensou, em fracção de segundo, o tempo entre dois pestanejares:
Quê que este gajo quer de mim!!? Engatar-me e galar-me, ou foi a um vendedor de livros em segunda mão e quer impingir-me o livro mais caro!!?
Continuou em pé a olhar e, no tempo de outro pestanejo, a pensar que poderia estar a fazer figura de ursa ao pé de um engatatão de meia tijela,sobejamente conhecido como tal no café. Ainda assim, continuou, até porque só é enrolado quem quer, pensou.
Este também é muito pormenorizado disse ela.
Sim, mas esse está cheio de pormenores ligados à história; desculpe, estou a roubar-lhe o seu tempo.
Não, não faz mal, não tenho pressa, disse Inês.
Logo a seguir seguiu-se um sinal com a mão, e o convite para se sentar na cadeira em frente, para conversarem sobre livros e autores que apreciassem. Inês não aceitou, claro.
Não, obrigada; o meu tempo..., mas,...quer que lhe compre o livro?
Não, não! Ofereço-lho.
Foi nesse instante que Inês olhou para a mesa com atenção para ver o autor e o título. Não conhecia.
É espanhol, perguntou.
Não. É chileno. Foi-me aconselhado, mas não me apetece lê-lo. Também não gosto da escrita de Saramago, disse.
Eu também não, respondeu Inês. Comprei o último livro dele, Caim, mais por causa da polémica, para ter uma opinião. Lê-lo-ei logo que acabe este. Pode ser que mude de opinião.
Naqueles escassíssimos momentos chegaram à conclusão que gostavam da escrita de Lobo Antunes.
Li há muitos anos os primeiros livros da sua carreira como escritor, emprestei-os, já não sei a quem e nunca mos devolveram, referiu ela. Depois, seguiram-se outros e agora vou comprar o último, estou curiosa. Ele tem aquele ar de lunático, mas é só ar.
Ah sim, sim, concordou ele. Viu a entrevista dele com a Judite de Sousa?
Inês tinha já na sua mão esquerda os dois volumes encostados ao peito.
Quando endireitou um pouco o corpo para seguir o seu caminho, olhou com mais atenção para a mesa. Um maço de cigarros, um isqueiro em cima, uma chávena com restos de café com leite do pequeno almoço, o espaço vazio do livro e com ar despachado disse-lhe:
Obrigada pelo livro e olhe, deixe de fumar, ...eu já deixei.
Sou um tonto, um parvo! Às vezes fazemos destas coisas.
Deixe e pronto. O fumo faz-lhe mal aos seus bonitos olhos.
Quando acabou a última sílaba, já estava a dar o segundo ou o terceiro passo e não esperou pela resposta. Continuou com o seu pisar firme, como sempre.
Pode ser que um dia o encontre e lhe diga se gostou ou não do livro, se tiver coragem para ler as mil e trinta páginas do romance 2666.
Há coisas,...pensou ela, quando, já sentada no comboio de regresso a casa, acabou de ler as capas e contracapas do livro de Roberto Bolanho.
Alguma vez eu imaginei que um desconhecido me iria oferecer um livro, ainda que fosse um livro rejeitado!
Há coisas!...

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